O 2 de Julho baiano: a importância da memória ancestral na luta contra a política da morte
Por Hilton Coelho

O Dois de Julho desperta em nós sentimentos muito profundos: uma mistura de nobreza, criatividade, espírito de coletividade, compromisso com o Brasil, especialmente com a luta que foi desenvolvida na Bahia para que a independência do país fosse completada. Dessa memória ancestral, podemos encontrar uma rica e necessária referência para as jornadas de luta contra o atual governo e sua política de morte.


A guerra de independência do Brasil, na Bahia, aconteceu como um acúmulo de um conjunto de sonhos, de posicionamentos e projetos que se conformaram de maneira mais sistemática a partir da chamada Revolução dos Búzios, em 1798, 24 anos antes do processo da guerra se iniciar nesse território.


Naquela conspiração, que se realizou em 1798, propostas como a distribuição das terras e o apoio generalizado às pequenas atividades produtivas acompanharam outras, como o fim da própria dependência externa, já que na época o Brasil ainda era colônia, e também o tão temido fim da escravidão. Tudo isso, de fato, se caracterizou como um movimento revolucionário, já que propunha a modificação completa das relações de trabalho no país: não só exigia o fim da escravidão negra como também a indígena.


Essas ideias foram marcando a nossa história de resistência, ainda que duramente reprimidas no início, com a execução de diversas heroínas e heróis, cujo maior símbolo foram os quatro jovens enforcados e esquartejados na Praça da Piedade: o soldado Lucas Dantas, o aprendiz de alfaiate Manuel Faustino dos Santos, o soldado Luís Gonzaga das Virgens e o mestre alfaiate João de Deus Nascimento.


A luta deflagrada pela chamada Revolução dos Búzios passou a inspirar um conjunto de indivíduos, especialmente grupos de servidores do Estado, proprietários e a população escrava da província da Bahia.


Foi isso que fez com que a rebeldia tomasse os quartéis como uma forma de reação à chamada Revolução do Porto, em Portugal, que pretendia retornar de maneira absoluta relações de subordinação do Brasil em relação a Portugal, já que esses laços haviam sido, de alguma forma, fragilizados pela vinda da família real para o Brasil, em 1808, e pela ocupação inglesa no território de Portugal.


Foi em função disso que os primeiros embates se deram nas ruas da cidade de Salvador, especialmente na avenida que hoje chamamos de Joana Angélica, devido ao posicionamento da Soror Joana Angélica de acolher e esconder os soldados rebelados contra os portugueses. Após um confronto de rua, a própria Soror foi assassinada, decorrendo, então, a fuga dos soldados para o Recôncavo Baiano.


É lá, no Recôncavo Baiano, que já estava incendiado pela ideia de que o Brasil deveria romper a dependência com Portugal, que esses revolucionários se encontraram com os filhos da Revolução dos Búzios. Daí nasce o caldo para se constituir um verdadeiro exército popular.


Essas tropas populares vão se juntar com rebeldes de Salvador e vão asfixiar a dominação portuguesa na cidade. Isso levou os portugueses a abandonar o projeto que era, em verdade, de controlar o Nordeste. Ainda que perdesse grande parte do território brasileiro, Portugal pretendia manter sob sua exploração direta uma das partes mais ricas do Brasil. Afinal, era a região com maior nível de produção de cana-de-açúcar, valorizada especialmente na Europa.


Observar o cortejo de 2 de Julho com atenção mostra de maneira muito evidente o que foi esse processo: um acontecimento de grande envolvimento popular, marcado pela sua criatividade, sobretudo, o seu compromisso radical de um Brasil independente.


É por isso que há um imenso contraste entre o 2 de Julho e o 7 de Setembro. Esta última cerimônia marca a formalidade autoritária das tropas que ocupam as ruas em todo o País. A festa cívica do 2 de Julho, mostra toda criatividade, toda irreverência e todo compromisso do nosso povo com a transformação radical.


Hoje temos um governo que simplesmente se orienta pela máxima de vender tudo: vender a nossa Petrobrás, vender os nossos Correios, os nossos bancos estatais, privatizar todo o serviço público, enfim, destruir toda a máquina de afirmação do Estado nacional.


O governo de Jair Bolsonaro, além de genocida, tem um projeto que coloca o Brasil numa perspectiva de volta à relação colonial, na medida que promove a economia brasileira, como uma economia de produtos primários, especialmente do agronegócio, de madeireiras e mineradoras, e destrói a soberania e o pensamento nacional, a exemplo da destruição dos investimentos na ciência e tecnologia. Com esse governo, tudo que é a favor do povo, tudo que foi conquistado pelas lutas do povo oprimido, está ameaçado.


Portanto, mais do que nunca, nós precisamos desses sonhos que percorreram décadas na Bahia e desaguaram no 2 de Julho, tendo-os como uma perspectiva de rompimento real com a dependência externa e de afirmações de ideias de liberdade. O 2 de Julho é, sem dúvida, a maior festa cívica de comemoração da luta pela independência de nosso povo.


Mais do que nunca, nós precisamos dar continuidade a essa luta. Por isso, na jornada de lutas pela queda desse governo genocida, vamos levar às ruas do Brasil a inspiração das lutas populares baianas. Esse é um momento de nos inspirarmos na criatividade e rebeldia dos nossas lutadoras e lutadores ancestrais e realizar a segunda guerra de independência no Brasil e do Brasil, levando a cabo um novo projeto de civilização e de nação.


  • *Hilton Coelho é mestre em História Política da Bahia e Deputado Estadual pelo PSOL-BA.