Audiência pública sobre o Dia Estadual de Luta contra o Encarceramento da Juventude Negra, realizada no dia 15 de junho deste ano, na Assembleia Legislativa da Bahia, foi palco de denúncias e proposições coletivas para o enfrentamento do hiperencarceramento de jovens negros e periféricos no estado. O principal encaminhamento foi a construção de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do sistema prisional baiano. O pedido formal da instauração da CPI será feita pelo deputado Hilton Coelho (PSOL), membro da Comissão dos Direitos Humanos e Segurança Pública e autor e coordenador da audiência.
"Vamos bancar o pedido dessa CPI porque é uma questão incontornável para a defesa dos direitos humanos na Bahia", disse o deputado. Ele lembrou que na Casa Legislativa, seu mandato também já pediu a instauração da CPI do Genocídio da Juventude Periférica e Negra. "Não há assinaturas ainda. Temos uma barreira a vencer aqui nessa Casa. Mas as denúncias estão se acumulando e chegará um momento em que será desmoralizante para as instituições negar essa exigência dos movimentos sociais. Essas duas CPI são irmãs, estão ligadas à vigilância sobre um mesmo processo: a política de ataque, contenção e morte da população negra e periférica", afirmou o parlamentar.
Tortura
Familiares de internos, lideranças de movimentos pró-desencarceramento e representantes de órgãos defensores dos direitos humanos presentes na audiência fizeram diversas denúncias de violações de direitos protagonizados pelas gestões, servidores públicos e terceirizados do próprio sistema prisional.
"Estamos falando de tortura. Um familiar sequer pode se queixar dentro das unidades. Quando faz isso, tem sua carteira de visitante tomada", disse Elaine Bispo da Paixão, liderança do Movimento Desencarcera Bahia, que afirmou haver, inclusive, mortes de internos dentro dos presídios em decorrência de tortura por espancamento. "A sensação de impunidade do servidor público desse sistema é tão surreal, que não tem caneta que descreva", completou.
Parentes de internos também denunciaram abusos como tortura psicológica e assédio de vários níveis e tipos. Uma familiar, que prefere não se identificar, temendo ter a carteira de visitante cassada e até outros tipos de represália, o que seriam atitudes extra-judiciais e ilegais, disse ter sido acuada a fazer revista íntima, já tratada pelo STF como um procedimento "vexatório" e que "ofende a dignidade da pessoa humana, a intimidade e a honra". Ao expor que era de conhecimento dela que revista íntima estava proibida em todos os presídios do Brasil, foi, segundo ela, submetida de forma autoritária a fazer uma ultrassonografia para descartar a suspeita de estar portando dispositivos celulares ou algum tipo de arma.
Outra familiar, T. S., esposa de um interno na Unidade de Vitória da Conquista, disse ter levado uma advertência registrada na sua carteira e que foi ameaçada de tê-la cassada, só por ter se queixado de um inseto na comida de seu companheiro.
"Tortura não é só espancar. O familiar dos internos sofre tortura psicológica e moral desde a porta da unidade", revelou Elaine da Paixão. "A política pública nunca esteve lá nas comunidades para aquelas e aqueles antes de serem internos desse sistema prisional. Não tiveram educação, saúde, e tantos outros direitos que deveriam ser garantidos. Mas todos os dias, quando acordamos, nós, povo preto e periférico, quando abrimos a porta de casa, recebemos como política pública o braço armado do estado", denunciou.
O atual navio negreiro
A ouvidora geral da Defensoria Pública da Bahia, Sirlene de Souza, considera o hiperencarceramento da juventude negra e periférica como parte do projeto de genocídio do povo negro. "Esse genocídio perpassa pelo cárcere. Não estamos somente falando da morte física, mas também da morte social. O navio negreiro não acabou, mas foi ressignificado na nossa sociedade", advertiu, ressaltando o caráter racial dos dados expostos pelo defensor público, Daniel Soeiro: "ao analisar as prisões que ocorreram em Salvador, nas audiências de custódia, em 2020, a Defensoria computou que 98% dos presos foram de pessoas negras. Vivemos num país racista e sabemos quem é preso e quem morre", disse Soeiro.
Luciene Santana, pesquisadora da Rede Observatório da Violência e membro da ONG Iniciativa Negra, também destacou dados que confirmam o caráter racista da política de segurança: "100% das mortes em decorrência da violência policial são de pessoas negras". Ela afirma que faz parte da luta a produção consistente de dados, já que o próprio estado não tem cumprido com o fornecimento dessas informações.
Outros dados também foram lembrados pelo deputado Hilton Coelho: a Polícia Militar da Bahia é a segunda mais letal do país, de acordo com levantamento da Rede de Observatórios da Violência e a maioria das abordagens se dá explicitamente devido à cor da pele. "São dados assustadores. Um dos que mais me chamaram atenção é que mais de 76% dos jovens abordados pela polícia não portavam ao menos uma arma branca", apontou.
Povoadas imensamente por pessoas negras, superlotação, práticas de tortura e violações da dignidade são evidências gritantes tanto das unidades socioeducativas, como das unidades prisionais de adultos. Elaine da Paixão também adverte que vem crescendo o encarceramento nas unidades femininas, assim como fatos que precisam ser um alerta vermelho "estrondoso", como a super medicalização com psicotrópicos dessa população carcerária. "Precisamos falar mais do encarceramento feminino. A política de controle do corpo feminino está acelerado e parece que não estamos nos dando conta disso", advertiu.
Participaram da mesa, além da ouvidora-geral da Defensoria Pública da Bahia, Sirlene Vanessa Assis, e do defensor Público, Daniel Soeiro, Laiz Franco, da Associação de Advogados dos Trabalhadores Rurais da Bahia (AATR); Luz Marina, do Escritório Social; Nadjane Cristina, do Coletivo Incomode, Dhay Borges, do Coletivo Resistência Preta, Elaine Bispo da Paixão, do Desencarcera Bahia; o padre Ozeas Nascimento, vigário-geral da Diocese da Bahia da Igreja Católica Independente.