Na luta pelas águas do oeste e comunidades guardiãs do cerrado baiano
Por Mandato da Resistência

Por Mandato da Resistência

O cerrado baiano, integrante da região geoeconômica Matopiba, eleita como “zona de sacrifício”, foi pauta de audiência pública proposta por nosso mandato em junho deste ano, na Assembleia Legislativa  da Bahia. Estamos na luta junto aos diversos movimentos populares do oeste baiano, como as comunidades de fundo e fecho de pasto, as atingidas por barragens, entre outras geraizeiras que estão diretamente impactadas pelo agronegócio na região.

Estamos falando de uma região que compõe o bioma que é a caixa d'água do Brasil, ou seja, que é fundamental para segurança hídrica do País!

O cerrado é também chamado de "bioma coração", porque, como um coração, ele é que bombeia e distribui a água que dá vida às principais bacias hidrográficas nacionais e sul-americanas.

São mais de 25 milhões de pessoas que vivem na região que dependem diretamente desse berço de nascentes, fora as outras milhões para as quais essas águas chegam de forma indireta; isso para não falar da importância desse bioma para a contenção dos efeitos climáticos.

No entanto, esse bioma está sendo morto pela ganância do capital: uma ação suicidária porque coloca na conta de todos os povos do planeta consequências catastróficas devido ao agravamento das mudanças climáticas.

Revelando dados

Sabemos que a perda de vegetação nativa prejudica a capacidade do solo de armazenar água. E hoje, o desmatamento provocado pelo agro é a maior causa da devastação do cerrado.

O último mapeamento anual do uso e cobertura da terra no Brasil, o MapBiomas, do Observatório do Clima, traz dados estarrecedores: o agro responde por 97% do desmatamento do país nos últimos 5 anos.

Em 2023, bem mais da metade de todo esse desmate, ou seja, 61%, está no cerrado, ou seja: em 2023, o desmatamento no cerrado ultrapassou o da Amazônia.

Houve uma perda de mais de 1 milhão de hectares de vegetação nativa. E isso representa aumento de 67,7%, em relação a 2022.

Outro dado que pesa sobre nossos ombros é sobre o município que mais desmatou no Brasil neste ano. Ele está localizado na Bahia: é São Desidério, que teve mais de 40 mil hectares devastados. É bom lembrar que a região de São Desidério é responsável pela grande parte da disponibilidade de água nos rios que alimentam a Bacia do Rio são Francisco. 

Depois do Maranhão, a Bahia é o estado que mais desmatou em 2023, com mais de 290 mil hectares devastados, ou seja, teve uma alta de desmatamento de 27,5% em relação ao ano anterior. 

O uso mortal da água

Não é só o desmatamento que costura esse cenário trágico. Há um grande esquema que precisa ser urgentemente desmontado, que é o uso da água pelo agronegócio.

Hoje, no Brasil, quase 80% da água está comprometida com o agronegócio, de acordo com a agência nacional de águas e saneamento básico.

Na Bahia, as outorgas dadas pelo Inema ao agronegócio no oeste revela a relação promíscua entre o governo do estado e esse setor.

Uma matéria investigativa da agência pública revelou em dezembro de 2021 que o estado da Bahia concedeu, em outorgas hídricas, 1,8 bilhão de litros de água por dia a pouco mais de de duas dezenas de diretores e conselheiros da Associação de Agricultores e Irrigantes da Bahia, a “Aiba”, e à Associação Baiana dos Produtores de Algodão, a “Abapa”, além de familiares e empresas ligadas a eles. Isso é água suficiente para abastecer cerca de 11,8 milhões de brasileiros. Ou, como compara a reportagem, daria para abastecer diariamente toda  população de Pequim, na China.

O mais estarrecedor é que toda essa água é usada, não para a produção de alimentos, como prega a narrativa do lobby do agro, mas para a produção de commodities! Ou seja: a soja, o milho, o algodão… não são alimentos para esse setor, mas produtos de exportação.

Por outro lado, o IBGE já mostrou que cerca de 70% dos alimentos que chegam às casas brasileiras são da agricultura familiar.

Violência

A agricultura familiar é que alimenta o brasil, mas o agro, que não tem nada de pop, é quem tem a anuência do estado para consumir de graça a principal matéria-prima para o seu lucro imoral: a água. 

Não é de hoje que estamos fazendo advertências sobre a gravidade da degradação ambiental protagonizada na Bahia com a anuência dos próprios órgãos ambientais, como o Inema. Isso é inconcebível! Por isso, nosso mandato vem defendendo a CPI das Licenças Ambientais.

Precisamos escancarar que está em curso na Bahia uma política genocida, que além de ter um braço na política de Segurança Pública, também tem em sua base o racismo ambiental institucionalizado e protagonizado pelo Inema.

A situação de violência institucional sistemática dos órgãos ambientais contra os povos e comunidades da região não somente conta com a gestão ilegal de licenças de desmatamento e outorgas hídricas, mas também com a falta de fiscalização e “vistas grossas” ao uso criminoso de agrotóxicos e outras práticas ambientais nocivas.

Estudos da geógrafa Larissa Bombardi já mostrou que o cerrado hoje é um bioma ambientalmente comprometido por agrotóxicos. Esses agrovenenos estão sendo encontrados em altas concentrações nos animais, nos corpos dos moradores vizinhos das monoculturas e, o que é mais preocupante, na água.

Terrorismo Ambiental

Há ainda relatos de ataques químicos, com o uso de pulverização aérea de agrovenenos, como forma de terror contra as comunidades habitantes de territórios cobiçados pela grilagem.

Estivemos na região pessoalmente, conversando com diversas lideranças, visitando territórios que estão sob grave vulnerabilidade como consequência da devastação ambiental gerada pelo agronegócio e outras ações do terrorismo ambiental.

Temos denúncias de ataques por milícias armadas, pistoleiros, extermínio de animais, disparos contra residências, incêndios criminosos, ameaças explícitas e assassinatos. Como não chamar isso de terrorismo? Está explícita a prática de violência sistemática como meio de forçar a desterritorialização de comunidades inteiras. Isso somado aos ataques do próprio Estado. São incontáveis os exemplos: além das licenças questionáveis e mesmo flagrantemente ilegais, há toda a excrescência colonizadora do judiciário revelada pela Operação Faroeste, da Polícia Federal.

Há vários estudos que revelam que o oeste baiano tem um longo histórico de devastação e grilagem, com titulações subsidiadas por documentações precárias e inseguras.

E foi através de expedientes como esse, recheados de pistolagem, que o agro chegou a tomar mais da metade desse bioma que é crucial para a nossa soberania hídrica.

A Bahia vai ter que assumir a sua parcela de responsabilidade diante das tragédias decorrentes pelas mudanças climáticas.

Além disso, também precisamos reconhecer que os povos e comunidades tradicionais do cerrado baiano não estão tendo seus direitos respeitados por órgãos como o Incra, que mostra ineficiência na titulação dos territórios tradicionais.

Nesse contexto, apelamos ao Ministério Público e ao Poder Judiciário que levem a cabo o papel de garantir esses direitos. Por isso, destacamos aqui o importante papel da Procuradoria da República, da Polícia Federal e do Conselho Nacional de Justiça, na busca de correções justas para que as instituições operadoras do Direito cumpram seu papel democrático e constitucional.

O nosso mandato está totalmente comprometido na luta em defesa das “águas do oeste” e da manutenção dos modos de vida das comunidades geraizeiras do oeste da Bahia, as guardiãs desse bioma que é o coração do Brasil. Essa é uma luta pela vida, pelo futuro do planeta, pelo pacto de uma existência civilizatória em que a vida seja mais importante do que o lucro sobre a morte.