Terrorismo ambiental: Superpopulação de lagartas exóticas ataca manguezais em Ilha de Maré, na Bahia
Por Equipe da Resistência

"Mais uma mostra do terrorismo ambiental que o povo e o território de Ilha de Maré vivem cotidianamente", diz liderança quilombola da ilha.

O cenário é desolador: no lugar das folhagens verdes, responsáveis pelo sombreamento adequado a um rico e complexo ecossistema, o que se vê são vastas áreas de manguezais acinzentadas, apenas com as nervuras das folhas à mostra, como se tivessem sido acometidas por um grande incêndio. 

Não é a primeira vez que as comunidades tradicionais de Ilha de Maré, localizada na Baía de Todos os Santos, no município de Salvador (BA), se surpreendem com sinais do sofrimento ambiental. Desta vez estão alarmadas com a presença de uma "praga" nos manguezais, que são a principal fonte de subsistência dos povoados da ilha, dependentes da pesca e da mariscagem. 

Há um mês que lideranças da comunidade quilombola de Bananeiras, localizado no nordeste da ilha, vêm alertando autoridades públicas e instituições de proteção ambiental sobre a presença dessas lagartas jamais vistas no território e que vêm se espalhando e atacando a vegetação dos manguezais de forma muito rápida. 

Marizelha Lopes, 41,  pescadora, marisqueira e liderança na comunidade de Bananeiras, afirma que chegou a realizar avisos formais ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e ao Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema), órgão estadual. Ela disse ter também contatado a promotora de Justiça, Cristina Seixas, que é coordenadora do Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Meio Ambiente e Urbanismo do Ministério Público estadual, mas não sabe dizer em que pé está o encaminhamento do caso pela promotoria às instituições competentes. Somente depois de a equipe do deputado estadual Hilton Coelho (PSOL) ter visitado a comunidade atendendo ao pedido de socorro de lideranças locais, e divulgado a situação na imprensa, é que algumas medidas, tardias, começaram a ser tomadas. Num caso como esse, o Ibama deveria ser o primeiro órgão a se manifestar e realizar visita técnica. No entanto, isso ainda não ocorreu.

"Os órgãos ambientais são muito rápidos para liberar empreendimentos que impactam o meio ambiente e a vida de quem vive nesse território, mas quando se trata de socorrer vidas e o próprio meio ambiente maltratado por esses empreendimentos, são muito morosos", criticou Marizelha. 

Desequilíbrio - De acordo com o biólogo e mestre em ecologia, Jean Anjos, 27, nativo da comunidade quilombola de Bananeiras, a presença de uma superpopulação desse tipo de lagarta exótica (lepidoptera), que assume um comportamento de praga na vegetação dos manguezais, é um dos sinais de grande desequilíbrio ambiental. Ele explica que geralmente esse fenômeno acontece precedido de grandes impactos ambientais, como desmatamento e poluição severa, o que facilita que espécies invasoras encontrem um ambiente propício para se desenvolverem de forma desordenada.

Com a ausência dos técnicos do Ibama e de manifestação dos demais órgãos ambientais contatados, o biólogo, juntamente com diversas mulheres marisqueiras da comunidade, coletaram e enviaram amostras das lagartas em diferentes fases de metamorfose para o Instituto de Biologia da Universidade Federal da Bahia (Ufba).

Jean Anjos logo suspeitou que essa espécie de lagarta é nativa do sul e sudeste asiático e que já houve ocorrências semelhantes ao que vem acontecendo em Ilha de Maré, em outras regiões de mangue no Brasil, também acometidas pelo desequilíbrio ambiental, como nos manguezais do município de Bragança, no Pará. Mas na Bahia, essa seria a primeira ocorrência. 

As amostras foram realizadas pela professora e coordenadora do Laboratório de Bionomia, Biogeografia Sistemática de Insetos (Biosis), Favízia de Oliveira. Os resultados da análise confirmaram as suspeitas do biólogo. De cordo com Favízia de Oliveira, trata-se da Hyblaea puera, mais conhecida como lagarta-da-teca. "É preciso trabalhar numa forma de combate para não chegar em todas as áreas de mangue", advertiu a professora.

"A nossa água e o nosso ar estão num nível de contaminação muito alto. O desmatamento dos manguezais também vem avançando. E isso impacta diretamente no ecossistema local, facilitando a ação de espécies invasoras que provavelmente são trazidas para cá em lastros de navios", explicou Jean dos Anjos.

"Essas lagartas virarão, daqui a um tempo, em mariposas. Por outro lado, com a desfolhação dos manguezais por esses lepidópteros, faltará o sombreamento necessário para espécies nativas. Com todos esses impactos, podemos ter diversos outros episódios como esse, de disseminação de espécies invasoras, como já temos visto aqui", afirmou o biólogo. 

Alguns precedentes -  O pescador Enéas da Cruz, 47, também da comunidade de Bananeiras, disse que seis dias antes de observarem a disseminação das lagartas, o povoado ouviu dois aviões sobrevoarem baixo sobre a ilha à noite. "Logo depois apareceram essas lagartas aqui em Bananeiras e nas localidades do Rio São Paulo. A gente é tão perseguido aqui que qualquer coisa estranha que ocorre leva a gente suspeitar que é proposital. Eu nunca vi uma coisa dessas, como esse tanto de lagarta comer folha salgada", relata. Ele se queixa da ausência do poder público para averiguar o risco que a praga pode provocar ao manguezal. "A gente só tem isso para sobreviver. A nossa vida é isso aqui. O nosso alimento vem do mangue. Mas quando é para cobrar nossa carteira de pescador a cada um ano e meio, eles sabem como fazer. A gente se sente humilhado pelos órgãos do Estado", exclamou. 

Marizelha Lopes soma às suspeitas de Enéas, o fato de a comunidade ter presenciado mortandade de peixes e sinais estranhos no mar. "Há um mês que  ligamos para o Inema e denunciamos uma mortandade de baiacus no rio São Paulo. Técnicos do Inema até vieram aqui, viram os baiacus mortos. Mas não nos deram nenhum retorno sobre o que se passou. O baiacu é um peixe muito resistente. Se aquele tanto de baiacus morreu é porque algo muito grave aconteceu", relata Lopes. Antes disso, ela diz ter também relatado para o Inema e para o Ibama sobre "uma tonalidade estranha no mar", além da presença de um "material semelhante a uma farinha", que estava na água e formava uma "faixa longa". "Falamos também da presença de siris mortos, com as carnes sem consistência, como se estivessem estragadas. Mas nenhum deles nos deu retorno", afirma.

Recentes ações de impacto sobre o meio ambiente completamente irregulares e com anuência de órgãos públicos que deveriam conter essas ocorrências criminosas também são relatadas pela comunidade de Bananeiras. Em setembro de 2020, a comunidade foi pega de surpresa: encontraram vários trabalhadores com motosserras destruindo uma grande extensão de manguezal no território da comunidade quilombola Boca do Rio, que abrange a foz do rio Aratu, no município de Candeias. "Eram funcionários da empresa Bahia Terminais, que teve licença do Inema, sem nos consultar e escutar", disse Marizelha Lopes. De acordo com ela, mais de dois hectares de vegetação de mangue chegaram a ser devastados para a construção de um empreendimento portuário. 

Em 2021, uma decisão liminar da 3ª Vara Federal Cível, que responde a uma Ação Civil Pública dos Ministérios Públicos Estadual e Federal, chegou a suspender integralmente o licenciamento que a Bahia Terminais havia recebido do Inema. No entanto, mesmo com a decisão judicial, moradores da comunidade flagraram máquinas da construtora dando continuidade às obras. De acordo com Marizelha Lopes, o cenário deixado pela praga nos manguezais é mais um fator que se soma aos diversos impactos sofridos pelas comunidades da ilha e entorno. E o silêncio dos órgãos de proteção ambiental dá anuência ao adoecimento físico e psíquico da população local.

"Os mais velhos estão assustados. Nós não dormimos direito. Vivemos sob alerta constante aqui em Ilha de Maré. Como se já não bastassem os gases tóxicos e todas as outras formas de poluição e contaminação ocasionadas pelos empreendimentos industriais instalados no entorno do Porto de Aratu, estamos com mais esse problema. Essas lagartas estão se alastrando. A gente até escuta o som delas, devorando as folhas. E aí se intensifica o medo que os manguezais morram e com eles o nosso meio de vida. A natureza tem dado os seus sinais", alertou. 

Terrorismo ambiental - Diversos estudos conduzidos e publicados em 2019 pela professora Neuza Miranda, da Universidade Federal da Bahia (Ufba), mostram que as comunidades da Ilha de Maré e entorno, a maioria de remanescentes de quilombo, além dos mariscos e pescados do território, vêm sendo intensamente contaminados por metais pesados, como chumbo e cádmio, entre tantos outros elementos considerados carcinogênicos para o ser humano.

"O que a gente vive aqui é terrorismo mesmo, é racismo ambiental", denuncia Marizelha. Ela afirma que desde 2010 "o Inema está rifando as comunidades da Ilha de Maré". "Não há consultas às comunidades. Nos tem sido negada a escuta, que é nosso direito. A gente só vê saindo licenças e mais licenças", disse se referindo aos empreendimentos na Baía de Todos os Santos licenciados pelos órgãos ambientais sem a execução de estudos técnicos de impacto ambiental de acordo com a legislação e sem respeito a convenções internacionais das quais o Brasil é signatário, como a Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que obriga a escuta às comunidades tradicionais.

Ela denuncia também a falta de critérios e trato adequados e com responsabilidade social e ambiental dos rejeitos industriais e de intervenções, como dragagens e desmatamento de vegetação de mangue. "Já desconfiamos, faz tempo, inclusive, que estamos tendo chuvas ácidas sobre nossos territórios. O adoecimento na comunidade é gritante. Há muitos casos de pessoas aqui morrendo com câncer. Como explicar o fato de crianças estarem desenvolvendo câncer? Faz pouco tempo que uma criança morreu de câncer com apenas 12 anos. E não é só isso. Temos muitos casos de intoxicação, de feridas que se abrem nos nossos corpos, e também casos de depressão e tentativa de suicídio. Em um mês, quatro jovens tentaram suicídio aqui na ilha. O que é isso, se não a expressão da nossa dor, do nosso sofrimento diante desse terrorismo?", questiona a líder quilombola, que relata também a perda da qualidade das frutas, no tamanho e no cheiro. 

"Muitos tipos de plantas estão desaparecendo. Secaram lagoas, córregos, destruíram manguezais. O estoque pesqueiro vem diminuindo. Mas a gente tem o direito de viver aqui, no nosso território, onde a gente se identifica. Todo ser, todas as pessoas têm direito à vida. Em vez de fazerem as reparações necessárias, isolam a gente, como se a gente não existisse. A sensação é de que escolheram a população de Ilha de Maré para sermos castigados. Há um projeto de morte e não de desenvolvimento. Há um povo morrendo para que alguns poucos enriqueçam", denuncia. 

Luta - O deputado Hilton Coelho levou o caso de Ilha de Maré para a Assembleia Legislativa da Bahia e fez uma moção de solidariedade voltada às comunidades. "Estamos acompanhando o caso da Ilha de Maré, em diálogo com as lideranças locais. Estamos cobrando ações rápidas dos órgãos competentes e não vamos descansar enquanto não houver ações institucionais que respondam aos direitos humanos, aos direitos constitucionais das comunidades, aos tratados dos quais o Brasil é signatário. O que a população de Ilha de Maré vem vivendo parece uma distopia, mas é a cruel realidade vivida por populações que são alvos do projeto racista e de morte dos interesses do capital", disse Hilton Coelho.

A Ilha de Maré e todo o entorno já eram habitados por comunidades quilombolas muito antes dos primeiros empreendimentos se instalarem por lá. A partir da década de 1950, quando começaram a surgir as indústrias ligadas à área petroquímica, o Porto de Aratu se tornou o principal escoadouro dos produtos produzidos no Polo Petroquímico da Bahia, em Camaçari. Desde então, as comunidades, auto-identificadas como comunidades negras sofrem o assédio e a violência diária dos empreendimentos que crescem, cada vez mais, sobre os seus territórios; sofrem com as intervenções ambientais e rejeitos negligentes e irresponsáveis dos processos industriais, que têm contaminado o ar, as águas e adoecido a população de Ilha de Maré.